Não sei muito sobre a vida, não sei muito
sobre o mundo. Não sei o que é uma vida árdua de trabalho ou uma infância dificultada,
não sei bem onde vivem certos tipos de pássaros ou onde brotam certas flores.
Claro que o que não falta à minha volta é história de vidas dignas de um Óscar
ou pessoas que vivem tão adeptas do meio ambiente que são capazes de gritar
comigo no meio da rua mal me vêem pisar uma ervinha banal. Modelos não me
faltam. Mas o que não sei, mal não me faz.
Já ouvi todo tipo de histórias e várias
versões das mesmas, cada uma com detalhes modificados.
Sim, já ouvi de tudo. Consequentemente, isso
não me ajuda em nada. Tenho de agradecer a algo superior por sempre ter tido
uma vida minimamente serena e metódica, nunca me poderei queixar de episódios desafortunados
ou poderei culpar a minha infância por um futuro menos acolhedor.
Pensando bem, pouco me lembro do passado
mais longínquo e, até hoje, não adquiri a capacidade de prever o futuro. Mesmo
que detivesse essa aptidão, não sei se iria usá-la. Acho que a magia se desvanecia,
perderia as particularidades de cada instante. E devo confessar que gosto de
acordar e não viver por um ‘amanhã’, apenas viver pelo segundo seguinte.
Mas apesar de tudo, lembro-me de acordar
todos os dias a desejar deitar-me e adormecer novamente, só pela bondade e
tranquilidade de um sono pesado de adolescente.
Dormir faz-me tão bem, gosto tanto.
Lembro-me de tantos sonhos, lembro-me de correr livre e de parar e pensar ‘vá,
quero acordar’ e de repente, a realidade pertencia-me novamente. Também me
lembro de adormecer sempre com o mesmo medo: acordar sozinha. Não que seja um
medo constante, presente em cada segundo de cada dia, é apenas o primeiro e
último pensamento lógico de cada dia que passo neste planeta, por algum motivo
designado Terra.
Não quero acordar um dia e não ter chão para pisar,
não ter uma mão que me segure, não ter uma presença que me acompanhe. É quase
cómica a dependência humana de outros da mesma espécie, visto que,
supostamente, o ser humano é autónomo. Mas todos vivemos de medos e o meu, por
mais grotesco que seja, é o que me faz crescer, viver, sofrer e, eventualmente,
morrer.
Acabo por me contemplar, incentivada a
arriscar, esticar ao limite, fazer o que posso e vencer a cada etapa, nem que
seja como forma de sacrifício por aqueles que amo e servem de exemplo por ainda
hoje travarem a difícil oposição da sobrevivência. Não sei se o sacrifício faz
efeito, mas vendo bem, acaba por valer a pena, pois sempre que acordo estão cá
todos. E nem imagino o quanto deve ser frustrante para quem acorda e, a cada
dia, desaparece mais uma pessoa. É viver no terror – penso eu. Felizmente não
falo por experiência.
Nunca acordei um dia a viver num pesadelo.
Nunca deixei a escola por me perder algures num canto escuro de uma ruela
qualquer e entregar-me a maus hábitos, a toxicodependência nunca foi algo que
me devesse inquietar. Nunca perdi a minha boa juventude a gritar de frustração
e a automutilar-me ou a magoar os outros por problemas meus, não haverá
qualquer psicólogo que diga que me tratou por um problema psicológico ou alguém
que me possa acusar de qualquer tipo de crime. Sempre fui pacata e instruir
problemas nunca foi algo que me cativasse. Nunca me dei ao luxo de magoar as
poucas pessoas verdadeiras que me rodeiam, muito menos estraguei a minha vida
por não me sentir importante o suficiente. O sentimento de superioridade nunca
se apoderou de mim e nunca tive desejo de ser melhor que alguém. E nunca,
enquanto for consciente de mim, vou perder as direcções do caminho que traço
todas as noites.
Mais uma vez friso que não falo por experiência quando digo ou refiro assuntos mais susceptíveis, não imagino a
dificuldade de controlar a mente humana e alcançar sanidade mental satisfatória
para rumar ao bom caminho. Enquanto acordar e tudo estiver como antes, farei
valer o título ‘’pesadelo’’ como aquilo que realmente é. Produto da mente
humana. E haja o que houver, estarei aqui enquanto me for humanamente possível.
Tanto virá, tanto irá. Mas enquanto o vento
for capaz de levantar poeiras e o mar tiver corrente para arrastar consigo o
que quer que se aventure por ele a dentro, abonarei cada porção de chão que
piso, cada mão que me segura, cada presença que me acompanha.
Não nego que já por várias vezes errei e
desvalorizei a minha origem. Mas hoje, especialmente hoje, que o mundo se está
a virar, que as economias se estão a extinguir, que o povo está insatisfeito e
nada funciona correctamente, vou ancorar-me a cada um dos motivos que me apuram
os sentidos e me desvanecem a visão, chamando a cegueira para não me deixar
presenciar certas opções ou atitudes. Pois tudo como vejo agora, amanhã estará
diferente. E esse, essencialmente, é o meu maior medo.
É irrelevante a visão, desde que eu tenha o
toque e os meus sentidos não me atraiçoem. Venha vento forte puxado a
tempestade, venha chuva criar inundações, venha o calor secar as fontes e criar
desertos, venha o mar com força e vigor afundar o continente. Morrerei feliz se
estiver adormecida e serena, se for esta noite. Apesar da menina que sou,
aprendi hoje o que é crescer. E não procurei a definição no dicionário, aprendi
da melhor maneira: puro saber, meu amor. Agora falo por experiência. Adormeço
ciente do que fiz e orgulhosa das minhas origens. Faz sentido?
Mais vos conto
quando acordar.