quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Amor Eterno

  Estrelas sempre me fascinaram. Aparecem sempre em cantos escuros, em noites frias ou quentes, em tempos de crise ou de desafogo, predomine (ou não) a felicidade, seja Verão, Primavera, Outono ou Inverno. Aparecem mal escurece o céu e acompanham quem pela noite a dentro se aventura. Quer haja nuvens ou não. Quer esteja alguém a observá-las ou a dormir. Aparecem sempre. E sempre me disseram que aquela estrela que aparece primeiro e que normalmente brilha sempre mais era aquela pessoa que partiu fora de hora, que nos deixou em tenra idade, que prevalece nos corações mas que, sinceramente, pouco nos recordamos dela. Seja familiar ou amigo, sempre me fizeram acreditar que aquele brilho mais forte era uma manifestação, uma leve tentativa de comunicação, logicamente em vão. E lembro-me de ser pequenina quando ele partiu. Era jovem e não tinha muito a recordar da presença dele no planeta. Ele nunca esteve muito presente e nos poucos anos de vida que eu tinha, pouco dava para recordar, pouco tinha vivido. Eram mais as histórias contadas do que as palavras próprias dele. Pelo que sei, ou quiseram que pensasse, ele vivia apaixonado por mim, só não se aproximava por medo de me ver crescer e de me aperceber que, afinal, ele não era como eu pensava. Nunca quis romper-me a ilusão e o crescimento era meio caminho andado para a realidade. Portanto, não quis participar nesse andamento. Não sei como sei, apenas sei. Ele vidrava ao olhar para mim, fascinava-se com cada gargalhada e cada lágrima era uma facada, abalava-o. Encantava-se com os meus dedos pequenos e o meu riso sempre presente na minha face rosada. Costumava dizer que eu tinha nascido para o alegrar, que não se atrevia a tocar-me com medo de contaminar tanta pureza e que a minha pele não podia ser tocada pelas suas ásperas mãos, servidoras da profissão. Sonhava em levar-me a viajar e mostrar-me as maravilhas do mundo, acordando segundos depois e negando-se a tal devaneio, pois a minha perfeição enquanto criação devia permanecer imaculada e proteger-me do mundo alheio era a prioridade.

   Ele sempre foi muito filosofo, do pouco que me lembro, pelo que cada frase parecia extraída de algum livro e eu dava por mim a sonhar acordada e a imaginá-lo a caminhar na lua amarela em forma de C e a brincar com uma cana de pesca, na vã esperança de apanhar alguma estrela para me oferecer numa pequena caixa cuidadosamente embrulhada em papel fluorescente, com um laço prateado à volta, para me obrigar a fazer um esforço maior ao desembrulhar a prenda. Ele tinha especial gosto em criar-me obstáculos quando eu estava ansiosa, ele dizia que estava a preparar-me para as filas das finanças, onde eu teria muito que esperar.

   Ele sabia que eu seria uma eterna sonhadora e notava na minha expressão que não o estava a ouvir quando ele falava comigo, sabia perfeitamente que eu preferia olhá-lo e imaginar um mar cor-de-rosa nos olhos dele, onde eu boiaria um dia. Mas mesmo assim ele falava, nem que fosse para compensar os dias que passava fora e não me via. Ele deixava-me sonhar e criar um mundo alternativo, usando-o como tela e as palavras dele como aguarela. E eu pintava assim os meus sonhos e a minha mente moldava-se às suas histórias, intensificando-as à minha maneira. Ele costumava rir-se quando eu me queixava do jantar estar muito quente. Era um riso pesado e seco, o tabaco também fazia o seu trabalho. E aí eu calava-me, olhava-o e imaginava-me num banquete, onde ele era o rei e eu o bobo da corte, onde a minha única função era agradá-lo, como que a minha vida dependesse disso. Ser simplória era uma profissão ao lado dele e eu cumpria-a como todo o gosto e alegria. Era um prazer, alegrar o meu rei era o que me competia e transcendia a obrigação, era questão de vida ou de morte.

   Eterna sonhadora como sou, ainda hoje o imagino como tal, um rei todo-poderoso, que jaz algures, após longos anos de luta incessável.

   Pouco recordo dele, fisicamente. Se me puser aqui a dizer que me lembro da cor dos olhos dele ou do cheiro do perfume dele, é mentira. Até porque do pouco que me lembro, grande parte são memórias de devaneios que tinha. Acho até que nunca soube a cor dos olhos ou do cabelo. Quando o fitava, nunca o observava, limitava-me a pegar em cada traço dele e criar uma história alternativa em cada fio de cabelo dele ou em cada gota de suor. Lembro-me, vagamente, do cheiro a tabaco na pele dele e de vinho tinto no hálito. Lembro-me que ele chegava tarde e demorava algum tempo a acertar com a chave na fechadura, mais para os últimos dias de vida. Lembro-me que ele já não dormia no mesmo quarto que a mulher para não a acordar quando voltava tarde da pesca ou das noitadas à porta do café. Tudo o resto, não creio que corresponda à realidade. Tenho presente na minha mente viagens de barco em mares de todas as cores e de receber como prenda pedaços de neve. Isso já são memórias de devaneios, mas era tudo ligado a promessas ou a quadros que pintava mentalmente, com cada palavra dele. Ele disse-me um dia que todas as minhas desilusões se remediavam facilmente, bastava pensar na neve. Ele odiava o frio e a neve não era algo que o fascinasse. Mas a teoria dele batia certo. Pensando bem, era das coisas que mais gostava de ouvir. Quando eu chorava ou ficava triste, ele falava-me da neve e ficava tudo bem. De repente, já nada me incomodava e eu era feliz assim. «Não chores. É como a neve – tu adora-la, ela nem sabe que existes. Por isso, não sofras por ela, ela está bem assim, lá no canto dela.». Nem sei como, resultava.

   Ensinou-me que sacrifícios são benéficos e sinceros, puras provas de significância, fascinantes actos provenientes de corações de ouro. E o meu… o meu faria por todos o que todos nunca fariam por mim. «Tão certo como o azul do céu».

   Ele sentia obrigação de me mostrar que tudo em mim tinha brilho e cada estrela do céu era uma qualidade presente em mim e que o meu coração tinha tantas qualidades quantas estrelas apareciam no meu céu. Obrigava-me a sorrir para ele até adormecer, pois se eu não sorrisse, as estrelas não brilhavam e havia muita gente dependente do meu sorriso. Um céu estrelado significava a minha felicidade e juro que uma vez, através de uma porta entreaberta, o vi chorar ao olhar para o céu, negro como breu, sem uma única estrela. Poderá ser devaneio, talvez seja, mas não quero perder tempo a pensar nos motivos que o levaram a chorar, não vá eu perder ali metade da minha infância.

   Eu era pequena e vi partir assim um incentivo à minha criatividade. Como uma estrela que desaparece com o nascer do Sol, nunca mais o vi. Como um dia que nunca mais acabava e uma noite que nunca mais chegava. Estaria a mentir se dissesse que o brilho das estrelas se alterou ou que elas diminuíram, que aparecem menos à noite ou que ficam menos tempo do que ficavam. Nunca reparei nesses pormenores, por isso não perco tempo a avalia-las. Mas olhar para o céu já não é rotina e não vejo beleza no brilho de cada estrela lá presente. E talvez a promessa que eu brilharia toda a vida me tenha feito ditar mal sentenças, porque as estrelas brilham independentemente de quem as olha, pois muita gente as adora e elas nem sabem que a raça humana existe.

- Do pouco que recordo de ti, as estrelas são as que mais tenho em memória, pois foram as únicas que te fizeram chorar, sem sequer se importarem com o gosto que tinhas em amá-las. Porque tu ama-las e elas… nem sabem que existes.